Muito além de uma coleta de sangue

Há poucos dias, ao me submeter a uma coleta de sangue, na recém-inaugurada unidade de uma renomada clínica de diagnósticos, a luva de látex descartável da enfermeira que me atendia rasgou ao ser vestida, motivo pelo qual outro exemplar foi retirado da caixa e, dessa vez, apresentava suas extremidades coladas, impedindo também seu uso.
Os materiais foram descartados no lixo e a enfermeira, em tom de resignação, comentou que tal ocorrência era habitual, e seguimos com o procedimento.
Ao aguardar outro atendimento, fiquei a refletir sobre o ocorrido, tendo, imediatamente, concluído que faltava gestão contratual àquele serviço de saúde, já que o problema se tratava de fornecimento de material de má qualidade. Nesse caso, impunha-se uma fiscalização efetiva, de modo a se coibir tal ocorrência, e, consequentemente, o desperdício de material, sendo imprescindível, em qualquer caso, o reporte, pelos empregados, de tais ocorrências ao setor competente, o que pareceu não ser o procedimento.
Entretanto, como minha permanência no local se estendeu além do esperado, tive tempo suficiente para analisar a questão e perceber que a deficiência, talvez, fosse mais abrangente do que a gestão contratual, podendo se tratar, na verdade, de mau funcionamento dos procedimentos relacionados à segurança do paciente.
Conjecturas a parte, o fato é que, não raras vezes, constatamos que os institutos e protocolos  relacionados à segurança do paciente são implementados pelos serviços de saúde apenas para cumprir as obrigações previstas na RDC 36/2013 da ANVISA e estar em dia com a fiscalização das VISAs. Nesse caso, entretanto, não almejam, verdadeiramente, o gerenciamento de riscos, com a aplicação sistêmica e contínua de políticas, procedimentos, condutas e recursos na avaliação de riscos e eventos adversos que afetam a segurança, a saúde humana, a integridade profissional, o meio ambiente e a imagem institucional, verdadeiro espírito da norma.
No caso em tela, sob a ótica financeira e visando o não desperdício de recursos, ao serviço de saúde seria facultada ações de fiscalização do contrato mantido com o fornecedor, por meio de sua notificação informando a falha do material fornecido, solicitando sua manifestação sobre o assunto, além de providências como o recolhimento do produto defeituoso, a devolução de todo o lote do produto e até a indenização pelos prejuízos causados, nos termos do instrumento contratual.
Por outro turno, sob a ótica da segurança do paciente – bem maior da instituição -, considerando que se trata de uma clínica à qual se aplicam os ditames da RDC 36/2013 e, portanto, sob o pálio da obrigatoriedade, seria imposta uma ação de gestão de risco encabeçada por seu núcleo de segurança do paciente, conforme procedimentos previstos no Plano de Segurança do Paciente- PSP, de modo a garantir a segurança no uso de materiais.
Também, se fosse participante do projeto Rede Sentinela, instituído pela ANVISA, competiria à instituição notificar à VIGIPÓS (Vigilância Sanitária Pós-Uso/Pós-Comercialização de Produtos), em observância ao sistema denominado tecnovigilância, por meio do NOTIVISA, de modo a informar sobre a falha do produto, fragilidade e defeito de fabricação.
Diante do exposto, apenas por observar o frenético movimento da clínica, ainda em fase de adaptação pelo pouco tempo de funcionamento, pude perceber que o crescimento do empreendimento, com a ampliação do rol de serviços prestados, ocorreu, talvez, prematuramente, no que tange aos procedimentos de segurança do paciente. Nesse sentido, é recomendável – e urgente- não só a revisão dos procedimentos, mas também o investimento humano e financeiro no núcleo de segurança do paciente, de modo a permitir seu efetivo funcionamento e o constante monitoramento.
Daniela Nogueira
By | 2017-09-21T00:03:13+00:00 agosto 19th, 2017|Artigos|Comentários desativados em Muito além de uma coleta de sangue